Crônicas de uma mulher que virou mãe e sobreviveu!
Com gente que tem filho acontece o seguinte: você tem uma vida A.F. e outra D.F.. Você mede o seu tempo na esfera terrestre – ou na távola redonda, a depender do seus grupos de zap – a partir dessa linha de acontecimentos e se torna um pouco dicotômico aos olhos de quem não povoou o mundo com descendentes.
Você parece ter vivido duas existências completamente díspares. Quem não tem cria não saca esse antes e esse depois, apesar de ser um fato intransponível como são os próprios filhos.
Para quem esperou pra lá de 30 para iniciar a carreira materno-paterna, há muita história before e after aquela foda que mudaria tudo para todo o sempre.
Tenho amigos descolados e despreocupados que se irritam um pouco quando digo (com mais frequência do que gostaria): “mas isso aconteceu numa encarnação anterior, antes dos filhos”. Eles acham que estou dramatizando, pagando de velha sábia ou tola. Ambas, ao captar a cara de tédio indisfarçável ao redor.
Porém a parada é inevitável. Tanta coisa importante fiz antes da maternidade. Primeiro beijo na boca, primeira transa confusa num motel. Primeira prova do Detran, segunda.
Passei na UnB, formei, casei, morei em São Paulo e Nova Iorque, testemunhei as Torres Gêmeas implodirem à minha frente, ao vivo e com muita fumaça e desespero.
Amarguei desemprego, desilusão profissional, passei em concurso público, algo que sempre objetei. Fui a Paris em 1998 para chorar a destruição da Notre Dame 20 anos depois. Olhaí ele, o advérbio definidor. Esses e outros fatos pré e pós definidores da existência feminina estão na Live que rolou no último dia 9/2/2022. Confira abaixo!
Fiz curso de datilografia e participei da criação do site do STJ.
Fui de carro até Buenos Aires. Tinha secretária eletrônica onde gravava recados chamados “poema da semana”. Comprei meu primeiro apartamento no terceiro andar de escada. Perdi meu cunhado mais amado num acidente de carro obscuro.
Li Grande Sertão, Veredas – uma guinada de paradigma literário – e Guerra e Paz (jamais poderia terminar mil páginas em poucas semanas se filhos tivesse).
Era menos insone e mais magra. Tive cabelão até a cintura, cortei e deixei crescer de novo e de novo e de novo.
Ia ao cinema toda a semana, sem perder os lançamentos mais esperados. Fiz cirurgia para me livrar da miopia que não quis se livrar de mim.
Tenho 33 anos de memórias pré-gravidez e 15 após. O antes ainda ganha de lavada, todavia filhos são uma inundação de afazeres, memórias e aprendizados que nos fazem abandonar a bagagem adquirida para se manter de pé na correnteza com alguma sanidade.
Portanto, esse lance de profetizar: “vou fazer isso agora porque quando tiver filho não faço mais” é verdadeiro para o bem e para o mal do que pode estar contido nessa profecia.
Não há mais tempo para o que não pode dar certo. A missão é criar filhos legais para um mundo que quer que eles e você se fodam. Você abraça a causa e vai.
Sim, amiga que está tentando engravidar ou que já está grávida ou que adotou, preciso lhe avisar que você vai “mudar tanto assim”, sim. Mesmo que não descubra que tudo o que você queria da vida era ser mãe e não sabia. Há mulheres que se revelam na maternidade: abrem mão de si e se entregam à vocação: “meu reino por um grito estridente: mamãeeeê!” Eu não sou desse time, tampouco sou o que me definia nos 33 anos A.F..
Daí sigo escorregando no cacoete: “ah, mais isso foi antes de ter filhos”. Entretanto, venho evoluindo para outra muleta discursiva mais interessante: “ah, mas isso foi quando Tomás fez isso ou aquilo ou “ah, lembro bem, foi no dia que Rômulo inventou isso ou aquilo”.
Amigos descolados e despreocupados, peço desculpas pela insistência desse marco histórico-filial. Ninguém é perfeito, muito menos as mães.